segunda-feira, 16 de outubro de 2017

Outubro

Detesto Outubro. A minha mãe morreu numa Sexta-feira 13, em Outubro, mas há 11 anos. Falei com ela no dia anterior e pela primeira vez não consegui manter a conversa. Estava delirante, a tentar planear como seria o mundo sem a sua existência. Interrompi-a, disse-lhe que não estava a fazer sentido nenhum, não valia a pena falar com ela assim. Consentiu que assim era e quando lhe disse que precisava de falar com os médicos, achou que eu tinha razão.Ela estava no hospital, o normal naquela altura. Acho que no último ano de vida, deve ter passado cerca de metade no hospital.

Nunca falei com um médico porque sempre fiquei satisfeita quando falava com ela, parecia-me que estava ciente da sua doença e de como a gerir, mesmo quando, uns meses antes, teve vários mini-AVCs e foi internada numa unidade em que os pacientes não recebiam telefonemas. Eu não sabia e telefonei na mesma. Naquela altura, toda a minha vida podia ser inferida pela conta do meu telefone: estavam lá registadas todas as conversas que tinha com ela, a data, a duração. Nos meus contactos, estavam os números de telefone dos hospitais todos, só precisava que me dissessem em que hospital ela estava, que eu encontrava o resto. Às vezes, a minha mãe telefonava-me e deixava-me uma mensagem: "Rita, liga-me assim que puderes." E eu ligava. Atendeu um enfermeiro, acho que foi a única vez em que falei com um enfermeiro, o normal eram enfermeiras. Quando me disse que não podia falar com a minha mãe, entrei em pânico, comecei a chorar e a aflição devia ser tanta que ele sentiu pena de mim e levou o telefone à minha mãe. Fiquei melhor só de a ouvir.

Na última vez que falei com ela senti que algo estava errado. Eu dizia ao meu marido, à minha irmã, e ao meu pai que ela podia morrer a qualquer altura, mas ninguém acreditava no que eu dizia. Muitas vezes as pessoas acham que sou alarmista, exagerada, dada a toques de paranóia, mas não é isso. Há alturas em que olho para a situação e tento encontrar as peças que são precisas para as coisas normalizarem, mas tudo o que acho necessário é praticamente impossível, e concluo que o mais provável acontecer é mesmo o pior. Foi assim naquela Quinta-feira e por isso eu queria falar com um médico. Perguntei à minha mãe qual a melhor altura para telefonar e ela disse-me às 9 da manhã do dia seguinte, 3 da manhã da minha hora. Liguei o despertador para essa hora e telefonei. Atendeu a enfermeira e disse que o médico ainda não tinha chegado, para ligar daí a uma hora.

Tive medo de adormecer e tentei manter-me acordada até às 4 da manhã. Telefonei outra vez, pedi para falar com o médico, disse-lhe por que era, e a enfermeira informou-me que a minha mãe tinha morrido meia hora antes. Tinham tentado ressuscitá-la, mas nada, ela já estava demasiado frágil. A família ainda não tinha sido avisada, eu era a primeira a saber. A minha mãe era uma doente muito querida no hospital, já era acompanhada há muitos anos, a equipa médica também estava em choque, por isso o atraso. Perguntou-me se queria que avisassem o meu pai, mas respondi-lhe que não, eu telefonar-lhe-ia. "A mãe morreu", disse-lhe, mas ele não acreditou. O meu pai ia a caminho do hospital, como já tinha feito tantas vezes. Era normal ela ficar no hospital, mas também era normal ele ir buscá-la e agora era uma péssima altura para ela morrer porque eles estavam tão bem, só faltava ela melhorar, explicava-me o meu pai.

A morte é normal, todos nós morremos; mas na nossa vida a morte é anormal porque cada um de nós só morre uma vez e os nossos pais também só morrem uma vez. Anos antes, nas minhas deambulações interiores, perguntava-me qual era a situação "óptima": é melhor morrermos nós e causarmos dor a quem amamos ou é melhor morrerem os que amamos e sofrermos nós a dor da sua perda. Qual é a prova de amor supremo? Tem de ser sofrermos nós a perda, pois se amamos alguém não queremos que sofra, era a minha conclusão, mas não é normal os filhos morrerem antes dos pais; o normal é os pais morrerem primeiro.

Achava a minha mãe que eu era uma pessoa muito forte e chegou a dizer-me que muitas vezes se sentia perdida, mas encontrava a força em mim. Eu detesto a força, ser forte parece-me desumano, mas quando alguém está triste ou em baixo, peço-lhes para serem fortes e sinto-me algo hipócrita. Que mais se pode dizer a alguém para os ajudar? Ou será que o dizemos para nos ajudarmos a nós próprios? Não sei a resposta, mas sei que acompanhar alguém até à sua morte é um privilégio, apesar de ser uma das coisas mais difíceis que fazemos. E apesar de eu estar do outro lado do mundo, acompanhei a minha mãe com bastante proximidade.

É diferente com o meu pai porque depois da minha mãe morrer, aos poucos, eu deixei de existir na cabeça dele. Quando o vi há duas semanas, perguntou-me se tinha falado com a Rita. Disse-lhe "Eu sou a Rita." Depois falou comigo e perguntou-me coisas da minha vida: o meu casamento, onde eu vivia, etc. O meu pai foi a primeira pessoa a perceber que o meu casamento estava mal e também percebeu que eu sentiria culpa de não poder cuidar dele por estar longe. Numa das últimas conversas ao telefone em que ele estava lúcido disse-me para não se preocupar com ele, que eu tinha de cuidar da minha vida, ele ficaria bem. Era tudo mentira, ele não ficou bem. Depois da minha mãe morrer, ele deixou de existir e conversar com ele tornou-se, lentamente, em sessões de tortura, em que ele me acusava de a ter matado e de o querer matar.

Nesta última conversa com o meu pai, não me acusou de matar a minha mãe. Apenas disse que a operação que ela tinha feito, alguns meses antes de morrer, lha tinha roubado. Nunca percebi que o meu pai gostava tanto da minha mãe antes de ela morrer, mas a melhor amiga dela disse-me que ele cuidava dela com muito esmero. Só que minha mãe tinha-me confidenciado que detestava não poder cuidar de si própria, preferia a morte a dar trabalho aos outros. Se calhar, foi a última vez que vi o meu pai.

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